Auxílio moradia para médicos residentes
- Ohana Galvão

- 15 de fev. de 2024
- 8 min de leitura
Uma ajuda necessária e, por vezes, decisiva para a manutenção do vínculo do médico com o programa de residência, frente ao marcante regime exaustivo de horas trabalhadas.

1. Programas de residência médica e carga horária exaustiva: dificuldade de horas livres que possibilitem ao médico a complementação de sua renda.
Sabe-se que a medicina é uma atividade laborativa conhecida por elevados padrões de exigência, sendo tal característica presente, não só no âmbito da graduação, mas também e, sobretudo, durante a residência médica, etapa já largamente conhecida por se tratar de um período propício à fadiga física e mental.
É que os programas de residência são dotados de uma extensa carga horária que, a muito tempo, vinha sendo normalizada, não fossem os crescentes números e estatísticas de indivíduos cada vez mais adoecidos, com suas condutas e rendimentos comprometidos pelo volume excessivo de trabalho. Ainda mais, porque muitos residentes, ainda que estejam estafados, não conseguem se manter apenas com o valor da bolsa da residência, motivo pelo qual se veem obrigados a trabalhar “por fora” para complementar sua renda.
Esse é o quadro mais comum no âmbito da residência médica: um ambiente onde o residente está, indubitavelmente, mais suscetível ao burnout, por se tratar de um período de formação em que o profissional vive uma dualidade de papéis: por um lado, ele é cobrado como aluno em aprendizado; por outro, deve agir como um profissional completo, de quem se exige responsabilidade, competência e eficiência.
Nesse ínterim, importante invocar o conceito de burnout que foi introduzido na década de 1970 pelo psicólogo germânico Herbert Freudenberger (1926-1999). Esse estudioso definiu burnout como “a exaustão consequente da excessiva exigência de energia, força ou recurso na realização de determinada atividade”. O assunto, depois, foi estudado pela pesquisadora Christina Maslach que definiu o burnout da maneira mais conhecida e empregada atualmente: “uma síndrome de exaustão emocional, despersonalização e reduzida realização profissional que pode ocorrer entre indivíduos que trabalham com pessoas.”
Dada a sua importância e relevância, vários estudos sobre o tema de burnout em médicos residentes foram desenvolvidos nos últimos anos, enfatizando a necessidade de aprofundar esse conhecimento, buscando identificar fatores predisponentes, riscos e, principalmente, propor mudanças para sua prevenção.
Ora, estamos diante da clarividente necessidade de reduzir o volume de trabalho “extra residência”, tendo em vista que a carga horária ali prevista já absorve a completa produtividade daquele indivíduo que, exausto, não consegue complementar sua renda com atividades extra curriculares.
Acerca desse tema o Art. 5º da LEI No 6.932 de 198, que dispõe sobre os programas de residência, prevê que tais programas respeitarão o máximo de 60 (sessenta) horas semanais, neIas incluídas um máximo de 24 (vinte e quatro) horas de plantão. No entanto, destaque - se aqui, tal regulamento é datado de 1981 o que nos leva a refletir acerca da seguinte constatação: se naquela época a previsão máxima permitida era a de trabalhar 60 horas, melhor sorte não detêm os residentes de hoje que, por vezes, ultrapassam 100 horas semanais.
Desta feita, conclui-se que os programas de residência médica consomem, se não completamente, grande parte da carga horária do médico residente, motivo pelo qual nada mais justo do que este complementar o valor da bolsa que compreende uma média prevista em lei de R$ 2.384,82 (dois mil, trezentos e oitenta e quatro reais e oitenta e dois centavos).
2. Base legal do benefício Auxílio Moradia e seus requisitos. Jurisprudência majoritária do STJ que assevera conversão em pecúnia quando não fornecida a moradia nos moldes da previsão legal.
Uma vez superada a constatação acerca da nítida sobrecarga de trabalho a qual os residentes médicos são submetidos, exsurge a real fundamentação para a implantação do direito que se pretende esmiuçar neste tópico.
Entrementes, o art. 4º, § 4º, da Lei 6.932/1981, impõe às instituições de saúde responsáveis por programas de residência médica o dever de oferecer aos residentes alimentação e moradia no decorrer do período de residência. Quanto à moradia, cada hospital ou faculdade de medicina é livre para estabelecer o próprio regulamento. Então, como nem todas as instituições dispõem de alojamentos próprios para acomodar os residentes, muitas vezes opta-se pelo pagamento em pecúnia. O objetivo aqui seria, em tese, uma quantia que permitisse ao médico bancar o custo de um aluguel, por exemplo.
Destaque-se, que a legislação não define uma cifra específica para o auxílio moradia de médico-residente. Por isso, as instituições de saúde costumam se basear em decisões judiciais, que fixaram um percentual de 30% sobre o valor da bolsa, veja:
AUXÍLIO-MORADIA - MÉDICO RESIDENTE - Conversão em pecúnia do período correspondente aos 24 meses de duração da residência médica - Cabimento - Previsão normativa que determina o oferecimento de moradia pela instituição de ensino ao médico residente - Art. 4.º, § 5.º, III, da lei 6.932/81, com redação dada pela lei 12.514/11 - Ausência de comprovação de ter havido o fornecimento de moradia in natura - Inexistência de previsão legal não deve constituir óbice à conversão em pecúnia - Pagamento de auxílio-moradia na forma de compensação equivalente a 30% do valor da bolsa recebida - Legitimidade passiva do estabelecimento de ensino e de saúde por ser a instituição responsável pelo programa de residência médica oferecido à autora - Precedentes jurisprudenciais da lavra do Colendo STJ, seguida pelos Colégios Recursais do Estado de São Paulo e pela TNU - Recurso improvido.
(TJ-SP - RI: 10133375220228260007 SP 1013337-52.2022.8.26.0007, Relator: Paulo Lúcio Nogueira Filho, Data de Julgamento: 23/11/22, 5ª Turma Recursal Cível e Criminal, Data de Publicação: 23/11/22)
No que toca aos requisitos propriamente ditos, a lei é resoluta: qualquer médico-residente pode solicitar o auxílio moradia, caso a instituição não forneça alojamento próprio, ou fique evidente que este alojamento lhe foi negado. Sendo assim, não se trata de um benefício voltado apenas a profissionais de baixa renda, ou que estejam trabalhando fora de seu estado de origem, devendo ser pago durante todo o período da residência médica.
De forma geral, o médico residente que necessitar de auxílio moradia deverá requerer diretamente no programa ao qual está vinculado. Os detalhes do requerimento, no entanto, podem variar conforme a universidade, mas em geral é necessária uma criteriosa solicitação que deverá ser formalizada nos moldes do que prevê a instituição.
Por se tratar de uma legislação ampla e irrestrita qualquer profissional vinculado ao programa pode solicitar o benefício, não havendo necessidade de comprovar pagamento de aluguel, insuficiência de renda ou deslocamento da cidade de origem. Inclusive, as condições financeiras da pessoa não são um critério para definir quem pode e quem não pode receber o auxílio. Trata-se, portanto, de um direito que poderá se estender do mais humilde ao mais abastado, bastando que os requisitos acima sejam respeitados.
O entendimento firmado no Superior Tribunal de Justiça (STJ) consiste na Instituição de ensino garantir o pagamento em pecúnia a título de auxílio moradia, se restar demonstrado que não houve a possibilidade de alocar o residente em alojamento médico, tendo reafirmado o posicionamento de que "existindo dispositivo legal peremptório acerca da obrigatoriedade no fornecimento de alojamento e alimentação, não pode tal vantagem submeter-se exclusivamente à discricionariedade administrativa, permitindo a intervenção do Poder Judiciário a partir do momento em que a Administração opta pela inércia não autorizada legalmente" (AgRg nos EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RESP 1.339.798, julgado em 22/3/17).
Ademais, importante que se observe que, mesmo que eventualmente o hospital tenha previsão da exclusão do fornecimento de moradia no programa de residência, tal condição não o isentaria de garantir o direito previsto na legislação, uma vez que um mero ato interno não pode se sobrepor ao que prevê a lei.
Fato é que, na prática, a maioria das Instituições não possuem regulamento, muito menos moradia para oferecer aos médicos residentes, motivo pelo qual o Judiciário vem suprindo essa lacuna cada dia mais.
Na prática, a exemplo do impacto financeiro que tal direito pode vir a ter sobre a renda de um Residente: tomando-se como base o período entre 1/3/2016 a 31/12/2021, o valor da bolsa de residência médica era de R$ 3.330, consoante a Portaria Interministerial nº 3/2016. Nesse cenário, a instituição seria condenada a indenizar o residente em R$ 999, por cada mês de todo o período da residência médica. Caso ela tenha durado 3 anos, a indenização pode alcançar quase R$ 36.000, além da respectiva atualização monetária.
Trata-se, portanto, de valor representativo não só se considerada a realidade do médico residente que ganha pouco, mas também se visto pelo prisma do médico que, após concluir a sua residência, precisa se capitalizar enquanto se firma no mercado, vindo a trabalhar na especialidade escolhida.
3. Auxílio que agrega substancialmente a renda do médico residente ou do especialista com pouco tempo de mercado. Direito pouco difundido.
Como visto, os requisitos para concessão do auxílio em comento decorrem, em resumo, do exercício da residência médica, sem olvidar os casos em que o médico já concluiu a residência, mas ainda se encontra dentro do prazo prescricional de 5 anos. Nesses casos, poderá haver o pagamento retroativo a título de indenização no importe de 30% incidente sobre o valor da bolsa-auxílio recebida durante todo o curso.
Destaque-se que, atualmente, por força da Portaria Interministerial nº 9/2021 do Ministério da Educação (Brasil, 2021), o valor da bolsa de residência médica é de R$ 4.106, motivo pelo qual o auxílio, que é calculado tomando a bolsa como base, se torna ainda mais atrativo.
Nesse esteio, caso o especialista detenha até 05 anos de desligamento da Instituição onde realizou a residência, ainda é possível reclamar o direito à moradia de forma retroativa. No entanto, o caminho, para que se alcance os valores retroativos, é recorrer à via judicial de posse de toda a documentação comprobatória do direito, notadamente, formando o escopo documental referente ao período em que esteve cursando a residência, bem como, comprovando eventual requerimento administrativo junto à Instituição responsável.
Certo é que se trata de um direito que, como a grande maioria, perece mediante inércia, especialmente se visto pela ótica de quem está se especializando, em constante movimento, sem tempo e energia para se aventurar em um procedimento que, caso conduzido sem a técnica necessária, não vai alcançar o propósito pretendido, qual seja a concessão do auxílio em pecúnia.
Assim, cristalino que, caso não haja intervenção, de preferência capitaneada por advogado especialista em tempo hábil, o direito ao pretenso recebimento correrá o risco de perecer, revelando-se, portanto, como um prognóstico de caráter limitado.
4. Conclusão
Sobeja de tudo quanto foi exposto, que a realidade dos médicos inseridos em programas de residência revela uma relação inversamente proporcional entre a quantidade de horas trabalhadas e os valores recebidos à título de bolsa, de modo que o auxílio moradia viria a agregar, substancialmente, a renda deste profissional que beira à exaustão e, muitas vezes, não consegue trabalhar além do que está previsto na carga horária da residência médica.
Diante desse cenário tão conhecido, surge a possibilidade de agregar o salário do médico que pode estar em pleno curso do programa de residência, como também ser especialista que concluiu a menos de 5 anos.
Como visto, o estabelecimento desse benefício é capaz de amenizar muitos dos desconfortos financeiros que são tão comuns à vida acadêmica, ou mesmo, propiciar um respiro ecônomico ao médico especialista que ainda não se firmou no mercado e, por essa razão natural, prescinde de dinheiro. Ainda mais se levado em consideração o total dos valores que podem resultar de uma liquidação de eventual ação judicial que defere auxílio moradia ao longo de 4 ou 5 anos de residência, o que poderá alcançar uma monta aproximada de cerca de R$ 70.000, que ainda deverão ser corrigidos.
Trata-se, portanto, de uma oportunidade ímpar, que se estende a uma classe de profissionais marcados não só pela perseverança nos estudos, mas também pelo acúmulo de altas cargas de trabalho, que, por óbvio, deveriam gozar de uma maior valoração salarial justo no período mais atribulado de suas carreiras.



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